quarta-feira, dezembro 03, 2008

o quarto

A chuva enfurecia-se lá fora, fustigada por um vento que a empurrava com violência de encontro à única e exígua janela daquele quarto, fazendo ecoar no interior uma cantilena compassada de curtos estalidos.

Entorpecida pela sonoridade hipnótica, o olhar dela ia poisando, ora na água escorrendo pelo vidro, ora nos fiapos de papel de parede esmaecido pela idade, que davam àquele quarto de hotel de inqualificável categoria um sentido de pesar. O tempo passava por ali há tempo demais e isso via-se nas sancas enegrecidas, na alcatifa roçada que há muito se tinha esquecido da cor, no estofo esgaçado de um velho sofá e numa coberta de cama com padrões de outras modas.

Também ela sentia ser, de outros tempos e de outras modas. Quando se olhava ao espelho, detinha-se na pele macilenta, nos olhos de expressão vítrea e nos lábios pálidos, numa triste figura longe dos tempos áureos de estrela brilhante. Dolorosamente recordava todos os palcos que tinha pisado com os seus movimentos de garça, dos calorosos aplausos e entusiasmos de um público sempre sedento por mais da sua diva.

Mas todo o seu esplendor resumia-a agora a uma escanzelada mulher, envelhecida pelos acontecimentos, diminuída e minguando a cada dia que passava presa naquela cadeira de enormes rodas metálicas. Confinada à imobilidade, privada de sentir a música a vibrar no seu corpo, revoltava-se contra aquelas pernas inconsistentes e que há muito lhe tinham deixado de obedecer.

Lamentava profundamente todo o esplendor da sua carreira como bailarina e toda a aclamação que tinha recolhido, entre ovações, ramos de flores e pretendentes apaixonados. Lamentava ter vivido tanto, como se a plenitude dos seus tempos áureos servisse agora apenas para lhe infligir mais dor. Cada memória era uma farpa que se enterrava na alma e que lhe ia sugando as vontades. E o dia de hoje fora decisivo na percepção deste facto.

Após uma maravilhosa festa de exultação da sua carreira e o lançamento de um livro com a sua história de brilho e glamour, um chorrilho de recordações invadiu-lhe o espírito e levou-a a desejar não merecer aquele reconhecimento. Queria antes ter sido toda a vida desconhecida, infeliz e frustrada por não pisar um palco verdadeiro. Talvez assim tivesse sido mais fácil de aceitar a consequência do seu acidente e a imobilidade que a deixava agora acanhada naquela cadeira.

Depois das solenidades cumpridas, regressara ao seu quarto de hotel, a única morada que reconhecia, desde que se desfizera voluntariamente dos seus palácios, também eles cravejados de rememorações. Caprichos de estrela decadente diriam alguns. Analgésico diria ela.

Colocou Chopin a tocar, para ouvir aquela melodia mais uma vez, mesmo que o seu corpo já não a pudesse dançar. Seria a última vez que a música a fazia desejar um passo impossível, mas seria também a última vez que os seus passos seriam impossíveis. Havia algo de profundamente libertador na morte...

sexta-feira, novembro 21, 2008

obrigada

Reparei agora mesmo, neste preciso instante e enquanto lia os os posts passados, que estas palavras já não são minhas. Ganharam vida própria, coisa que nunca tinha acontecido aos textos que ficavam rabiscados no meu caderno.
A sensação de reler agora o que escrevi, como se outro o tivesse feito foi revigorante. Fico feliz por ter tido coragem de publicar os meus exercícios...
Mesmo sabendo que os escassos visitantes (amigos e família) são dóceis na sua crítica, expor o que escrevo não foi fácil.
Agradeço do fundo do coração a quem me tem incentivado e apoiado nesta exposição.
Está a ser um prazer. Obrigada!

quarta-feira, novembro 19, 2008

conversa ao espelho

- Amas-me?
- Não sei, não é uma pergunta simples.
- Como é que não é uma pergunta simples? Não há nada mais simples do que um sim ou não!
- Mas o amor não tem nada de simples, é penoso de o reduzir a preto e branco, há zonas cinzentas. Não me faças essa pergunta, não agora!
- Se não consegues responder, a resposta é clara. Para mim não há cinzentos!
- Como é que eu te posso amar se tu não deixas? Eu quero dizer-te que sim, é essa a minha vontade, mas tu nem sempres tornas a resposta fácil...
E às vezes, amo-te sem o querer... e em certos dias, quero muito e não consigo. Hoje, por exemplo, não consigo, não quero!

...

Não me faças mais perguntas agora. Amanhã é um novo dia.

terça-feira, novembro 18, 2008

eu, tu, nós

É estranho quando chega a hora de te dizer adeus, de te dizer que tens de caminhar por ti próprio e que não posso mais resguardar-te do mundo.

Não te quero mal, quero-te bem, muito bem meu amor! É um amor tanto, que reconheço que apenas a dolorosa realidade te pode cuidar, com os seus amassos e maus tratos.

Solto-te hoje, envio-te para um caminho de espinhos, para que possas regressar um dia, mais forte, mais determinado. Para que voltes mais tu, para que eu possa ser mais eu... Só assim seremos nós!

domingo, julho 27, 2008

dois corpos, sem palavras

Percorreu-lhe todo o corpo, primeiro com as pontas dos dedos, sentindo timidamente o toque da sua pele e depois com ambas as mãos, de forma mais intensa, foi acariciando cada pedaço daquela fêmea que perante ele se entregava sem pudores.

Afundou-se no seu ventre, beijando-a e lambendo-a com prazer. Conseguia sentir os seus músculos tremelicando em resposta às suas carícias e o desejo a crescer conforme ela se ia contraindo em pequenos espasmos que acompanhava com gemidos lânguidos. Subiu um pouco para encontrar os seus seios redondos, apetitosos, que o incitavam a continuar, e saboreou lentamente os seus mamilos rijos, sentindo-a cada vez mais quente, cada vez mais louca.

Ela firmava as suas coxas, enlaçando-o como que a pedir mais. As mãos dela procuravam-no agora, para lhe sentir o desejo duro e o embalar numa carícia intensa e ritmada que lhe acelerava a respiração e o faziam querer estar já dentro dela. Desceu mais uma vez, agora para se encaixar no meio daquelas pernas determinadas. Beijou-a, sorveu-a e sentindo-a cada vez mais húmida, foi provando os seus recantos enquanto fincava os dedos nas suas nádegas, aproximando-os ainda mais.

Começou a penetrá-la com os movimentos cadenciados da sua língua gulosa e ela arqueava-se de satisfação, arfando a cada investida e verbalizando todo o seu prazer em exclamações intensas. Recuou um pouco, deixando-a rebolar-se para lhe oferecer os seus quadris e o seu rabo apetitoso, numa visão de puro deleite.

Acamou-se sobre as suas costas e penetrou-a vigorosamente sentindo-a a vibrar a cada estocada. Agarrou-lhe os seios para a sentir ainda mais próxima e continuou dançando dentro dela, ardente e molhada em arroubos compassados que pareciam querer sugá-lo. Ficaram assim os dois até quererem, gozando a agitação dos corpos até à explosão do prazer, o exorcismo das dúvidas e a libertação da alma.

Ofegantes, libertos, plenos e felizes, enroscaram-se suados e deixaram a manhã chegar em silêncio. Não eram necessárias palavras… os seus corpos tinham falado como nunca.

sexta-feira, julho 18, 2008

verbo

se eu amasse
se tu amasses
se ele amasse
se nós amássemos
se vós amásseis
se eles amassem
se fosse tão simples como conjugar...

quinta-feira, julho 17, 2008

leonor

Entrei, pé ante pé, na penumbra do nosso quarto. Descalço senti o piso macio a ceder ligeiramente a cada passo, enquanto avançava com uma surpreendente cautela, como se aquele espaço já não me fosse familiar, como se eu fosse um estranho a invadir a intimidade alheia. Uma fresta na janela convidava o vento fresco a entrar, empurrando a cortina para uma dança a par ao som de uma melodia imaginária. Na parede em frente uma enorme tela impunha-se sobre a cama e as suas pinceladas grossas denunciavam dois amantes despidos, abraçados e imortalizados na sua comunhão.

Sobre a cama, uma discussão de lençóis brancos revoltos acusavam a urgência dessa manhã, a sucessão imprevisível de acontecimentos e o desfecho, agora sei, inevitável. Num amanhecer como tantos outros, em que à primeira luz do dia Leonor despertava para se vir abrigar nos meus braços e depositar nos meus lábios um beijo quente, a claridade não me trouxe o seu calor habitual nem a seda da sua pele.

Ainda mergulhado num limbo entre o sonho e a consciência aguardei mais um pouco até me incomodar aquela suposta ausência e procurei eu o seu corpo esguio. Procurei as suas formas e o seu toque quente para a amar, como em tantas outras manhãs.

Não consigo sequer recordar, sem uma náusea e um desespero profundo, o terror súbito quando as pontas dos meus dedos me levaram ao pensamento uma mensagem de frieza, rigidez e inércia. Não tenho como descrever com a mínima exactidão os minutos que se seguiram na minha luta com Leonor, entre gritos angustiados perante a revelação do seu fim e as tentativas inúteis de a resgatar para a vida.

Regressar agora àquele quarto, depois da tempestade, depois das explicações aparentemente tão lógicas e científicas e da sucessão de burocracias, era encarar a realidade da ausência sem ainda a sentir verdadeiramente. Pairava no ar um vestígio ao seu perfume floral e as roupas dispersas iludiam a um prenúncio da sua presença. Breve foi essa ilusão e logo tombei de joelhos no chão, vencido pelo destino e rendido à evidência.

Quisera eu também não ter acordado nesta manhã para não ter de te ver pálida e sem brilho nos olhos. Quisera eu não respirar nem mais uma vez para assim ir ao teu encontro e voltar a sentir-te nos meus braços. Minha querida e adorada Leonor, minha companheira, amiga e amante… a chama que me alimentava extinguiu-se e agora sou órfão, despojado que estou de ti e do teu amor. Aqui, neste chão que já foi nosso, choro pela primeira vez e deixo partir a minha alma no rio dessas lágrimas.

terça-feira, julho 15, 2008

recordação

Uma vez por outra, o passado vem aninhar-se ao meu lado, faz-me companhia durante a noite e invade-me o sono. Sonho contigo, comigo, connosco e relembro o amor que partilhámos, a felicidade que nos embriagava, a alegria que nos contagiava e recordo todo um mundo que girava apenas à nossa volta.

Não sei que memórias teimosas são estas com que partilho a cama. Pergunto se foi o amor que ficou esquecido nestes lençóis ou se são apenas as saudades do passado que me toldam o espírito.

A verdade é que, uma vez por outra sonho contigo e acordo a desejar-te ao meu lado. Para me deitar no teu colo, beber da tua boca, comer do teu corpo e viver do teu amor, como se o tempo não tivesse passado e não fossemos hoje perfeitos estranhos.

Mas já não posso.

Já não sou capaz.

Nem eu de te amar a ti, nem tu a mim.

sexta-feira, julho 11, 2008

em branco

Só quem nunca escreveu uma linha, uma frase ou uma palavra - daquelas que emergem do fundo da alma e nos brotam pela boca ou nos invadem o pensamento - só quem nunca expressou com letras os seus medos e anseios é que pode desconhecer o drama da folha em branco.

A folha em branco impõe-se perante nós, desafiadora e impertinente, lança-nos um sorriso de troça e fica ali, a pairar como um fantasma que nos ensombra as ideias e nos tolda o raciocínio.

Hoje fiz-lhe frente. Olhei-a de forma ameaçadora, fixei-a com determinação, respirando fundo em plena concentração e disse-lhe NÃO! Hoje não levas a melhor, hoje não me vais obrigar a esconder, hoje eu vou fazer-te frente.

Comecei a debitar uma palavra atrás da outra, encaixando verbos e adjectivos, enrolando substantivos em preposições, misturando advérbios com interjeições, dando consistência às ideias, dando forma aos pensamentos... sempre empurrando o ponto final para longe.

Sim, hoje foi diferente. E hoje o branco ficou um pouco mais colorido, mais rico, mais denso. Gostei do desafio. Gostei tanto que em vez do ponto final vou deixar aqui reticências...

quinta-feira, janeiro 24, 2008

esta noite sonhei...

O toque irritante e intermitente do despertador não dá descanso. Arranca-me violentamente do sono, acorda-me bruscamente do sonho e deixa-me assim, atordoada, assombrada pela interrupção inesperada.

Estava bem melhor mergulhada no sono, a navegar pelo sonho, onde voava, pairava e dançava ao lado de cores, ao lado de flores e sorria. Nos sonhos não somos nós, nem eles, nem niguém, somos alguém que não sabemos quem... mas somos assim, livres, soltos, para ser, crescer e viver sem regras, imposições ou suposições. E assim ficamos, enquanto um toque irritante não nos vem lembrar que o sonho é só, por breves instantes, o delírio e o devaneio de escapar da vida para alimentar a alma.