segunda-feira, outubro 15, 2007

E se o mundo fosse nada? VII

Ouvi uma voz ao longe, talvez uma fada ou um encanto da natureza. Pestanejei mais uma vez e virei-me na direcção da voz de sereia. Uma lufada de ar fresco percorreu o meu corpo. Ali estava ela, caminhando entre o ouro, ondulando com o vento como um pássaro delicado.

Levantei-me num ápice, aos tropeções, para correr na sua direcção. Troquei pés e pernas, caí atrapalhado. Ergui-me de novo, agora mais lentamente, pouco a pouco, fui caminhando na sua direcção. Agora mais calmo, mais devagar cheguei até ela, linda, maravilhosa numa pele de seda e um aroma de lírios envolveu o nosso abraço. Senti o seu corpo delgado e frágil junto ao meu, quis ficar assim para sempre.

Olhei em meu redor e o vazio tinha dado lugar ao mundo que à pouco havia desaparecido. Uma nova realidade acabava de surgir. Este mundo era só meu, descobria-o agora, feito por mim, à minha medida. Onde eu não tinha de me esforçar por parecer igual aos outros, onde eu podia ser como bem quisesse, que tudo à minha volta se adaptaria de imediato. Por isso fui começando a andar, passo a passo, enquanto uma calçada se desdobrava debaixo dos meus pés, e pequenas casinhas de tons pastel se erguiam à minha passagem.

Pouco a pouco, foi crescendo à minha volta, a rua ideal, a cidade ideal. Por mim passavam pessoas bonitas, cheirosas, que sorriam e diziam bom dia. Ao longe, sobre o horizonte, vi surgir o mar, sempre quis viver perto dele. Sentia-se o aroma salgado no ar, uma brisa molhada que acariciava o meu rosto. Começava agora a construir o meu mundo. Onde eu era mais eu e a minha vontade reinava. ........................................................................... Desliguei o botão da consola e arrumei o comando para cima da mesa. Estiquei-me ao comprido no sofá e respirei fundo. Tinha ficado com a vista cansada de estar tanto tempo a jogar. A treta destes joguinhos é deixarem-nos a pensar na merda de vida que levamos.

E se o mundo fosse nada? VI

Quando de novo me senti, quando abri os olhos e olhei em meu redor, senti uma espécie de furacão a passar por mim. Como aquele efeito de descida de montanha russa, só que o fim não chegava. Uma descida quase interminável, quase insuportável rasgou-me por dentro. Fechei os olhos, voltei a abrir e não vi nada. NADA! De novo a ânsia do nada. Assistia de camarote a mais um insólito e alheio vazio, oco e fútil. Persisti parado, rodeado pelo meu maior assombro.

Mantive-me, sem nada poder fazer, enquanto o mundo à minha volta se esvanecia. Não havia palavras para descrever o meu pânico e o meu terror. A raiva e a fúria tomavam conta de mim, parecia que me arrancavam as entranhas com as mãos, que me sugavam a vitalidade e a energia. Sem o meu mundo não era nada. Começava a ficar farto desta palavra amaldiçoada… nada.

De novo reuni todas as forças para me mover e desta vez o meu corpo finalmente obedeceu. Primeiro lentamente, passo a passo, depois um movimento de braços, devagar porque continuava a medo. Comecei a andar em frente, olhando à minha volta. Não sentia nada de especial debaixo dos pés. Pisava um chão mas não via qual era. Virei-me de repente e comecei a andar noutra direcção. Ao fundo, continuava sem ver o que quer que fosse. Mudei de direcção mais uma vez e outra e outra vez, sem nunca chegar a lado nenhum, sem nunca perder de vista aquele deserto branco onde me encontrava, mas sentia algo, o movimento e a noção de mim estavam lá.

Devo ter ficado assim horas, caminhando errante, pois comecei a sentir um enorme cansaço. De repente só me deu vontade de morrer, mas nem isso podia, não tinha como. Sentim-me tombar para trás, de tanta exaustão e voltei a chorar, como uma criancinha perdida, órfã sem ter para onde ir. Era incrível como se tornava cada vez mais fácil fraquejar. Como tinha cada vez menos forças para lutar contra isto.

Comecei então a lembrar-me dos Verões passados no campo, a brincar às escondidas por entre o trigo. Uma brisa suave que fazia o campo murmurar, o ondular das searas que mais parecia uma dança ao som do vento. E então, senti uma brisa no rosto. A medo abri os olhos e vi que estava, como antigamente, no meio do trigo. A vento passava a correr ao meu lado e eu assistia, maravilhado. Fiquei assim, quietinho, sossegado para não espantar o sonho, com medo que acabasse a qualquer momento e eu me visse de novo do meio “daquilo”.

domingo, outubro 07, 2007

e se o mundo fosse nada? V

O meu coração batia de uma forma descontrolada querendo saltar para fora do peito. O suor escorria-me pela cara a baixo. Tinha nítida sensação de enlouquecer a qualquer momento. Continuei agarrado à porta, com se alguma coisa lá fora quisesse vir atrás de mim. Respirei fundo várias vezes até acalmar. De repente, fez-se um silêncio tal que me pareceu que o mundo à minha volta tinha desaparecido. Um arrepio gelado percorreu-me a espinha enquanto me virava lentamente. Fui erguendo o olhar desde o chão até à parede.

As minhas pernas e braços voltaram a prender-se ao chão, como se uma força qualquer me pressionasse até doer. As forças abandonavam-me, senti o sangue a desaparecer-me das veias. Transparente demais, até para me assustar com o vazio que estava à minha frente. A minha secretária e a estante tinham desaparecido. Aliás o gabinete tinha desaparecido. Eu estava de novo perante o nada e perante um vazio incalculável.

Quis voltar para trás mas percebi que também a porta tinha desaparecido, dando lugar a uma espécie de neblina que me enjoava. Senti tudo a andar à roda e o meu corpo começou a desintegrar-se, misturando-se com aquele nada. Deixei de me ver e de me sentir. Só sabia que ainda ali estava por que ainda pensava. E o cérebro é a última coisa a morrer, por isso, eu sabia que ainda existia.

Durante alguns momentos, que me pareceram tocar a eternidade, foi como se tivesse voltado ao sonho. A única novidade era a névoa que sabia continuar à minha volta. De resto, nem frio nem calor, apenas aquela sensação de que o mundo havia desaparecido e nada existia para além de mim.

O medo começou a evaporar-se, mas foi pior assim. Fui antes tomado pela inexplicável sensação do desespero e do abandono. Por momentos achei que todos os receios da humanidade se tinham concentrado em mim. E quase sem perceber, as lágrimas começaram a escorrer-me pela alma, porque o meu corpo tinha desaparecido.

Sem gritos, nem queixas chorei por dentro até perder a consciência, a única coisa que me restava. Tudo na minha vida acabava. Tudo se resumia a despedidas e finais inesperados. Até eu estava prestes a acabar diante de mim mesmo.

terça-feira, setembro 18, 2007

e se o mundo fosse nada? IV

Estacionei mesmo em frente à porta e saí a correr por causa da chuva miudinha que entretanto tinha começado a cair. Acenei o homem da portaria e fui directo à minha sala trocar de roupa. Despi o casaco de fazenda escura e os sapatos, substituindo-os pela batinha branca e ténis. Bebi um café amargo de um só gole e fui para a sala de triagem aturar mais umas gripes e viroses, de quem não tem paciência para esperar pelo médico de família e continua a entupir as urgências do hospital, acima de tudo, com graves casos de solidão.

Uma mulher com os seus trinta anos sentou-se à minha frente e começou a despejar uma série de queixas e lamúrias sobre a vida e o stress. Palpitações, agitações e suores frios, nada que um prozac não resolvesse. Passei a bola aos colegas da psiquiatria e mandei entrar o próximo.

Por volta da hora de almoço fui beber mais um café e dirigi-me à sala de grupo para ver as escalas e saber o que me esperava no resto do dia. Olhei para o mapa e percebi que ia passar o resto da minha tarde nos traumas, a receber acidentes de carro e queimaduras ou outra coisa qualquer mais escabrosa.

No meio de uma tarde relativamente calma, um aviso deixa toda a equipa de sobressalto. Um choque em cadeia à saída da cidade ia trazer seis pessoas em estado grave. Um miúdo de sete anos e a mãe, cujo carro se tinha incendiado durante o embate, entraram dez minutos depois para a minha sala. É nestas alturas que o meu raciocínio entra em automático e tudo começa a acontecer rápido demais.

Quase sem perceber, lancei-me sobre o miúdo, queimado até ao tronco superior, que mantinha os seus olhos esbugalhados como que a travar a dor. Soltou um grito que cortou à faca o ar pesado da sala e cravou as unhas no braço da enfermeira até sangrar. Dei-lhe mais uma dose de analgésico mas parecia não estar a funcionar. O seu corpinho esguio começou a contorcer-se em cima da mesa e parecia estar a entrar em choque.

Virei-me para ir buscar um sedativo e quando me preparava para lho administrar o miúdo tinha desaparecido. Sobre a marquesa estava apenas um lençol branco. À minha volta ninguém parecia ter dado por nada e continuavam de volta de um outro doente. Saí disparado pela porta e comecei a correr pelo corredor esbarrando contra quem me surgisse pela frente. Entrei de rompante no meu gabinete e tranquei a porta atrás de mim.

quarta-feira, agosto 22, 2007

e se o mundo fosse nada? III

Aproveitando cada segundo e enquanto me vestia, fui traçando o caminho até ao hospital. Com esta história das greves, tornava-se cada vez mais complicado chegar a horas. Não que fizesse grande diferença o meu atraso. Os corredores das urgências iam estar cheios de gente, velhos e criancinhas com dores de dentes ou de cabeça. As portas iam abrir-se a qualquer momento, empurradas por uma maca. Um ou outro acidentado, overdoses ou paragens cardíacas iam quebrar a rotina, mas não importava o meu atraso. Quando se está destinado a morrer, pode estar uma equipa toda à nossa volta que nada disso interessa. Tinha aprendido isso ao longo de 15 anos a fazer serviço no banco.

Estes pensamentos fizeram-me companhia durante o longo trajecto pela Avenida Principal. Ao meu lado ia um carro, daqueles desportivos topo de gama, com um miúdo de vinte e poucos anos a abanar a cabeça ao som da música, enquanto acompanhava com o ritmo com pancadinhas no volante. Ia completamente absorto do mundo à volta, mas parecia feliz. Parecia estar vivo, acordado para a vida, que era algo que eu desconhecia de há alguma tempo para cá.

Ontem à noite tinha aparecido um destes jovens lá no hospital. A diferença era que o de ontem vinha com duas fracturas expostas, uma hemorragia interna e um pulmão perfurado. Não houve nada a fazer, enquanto aqueles olhos morenos se pregaram fixamente em mim e eu senti de novo, uma maldita sensação de frustração. Mais um que já não ia ouvir música no trânsito nem passear com a namorada ao fim de semana ou jogar uma futebolada com os amigos. Como costumávamos dizer, mais um para o andar de baixo.

Quando voltei a olhar para o lado, o carro já não estava lá. Nem o carro, nem o miúdo, nem o resto da rua. Ao meu lado estava uma espécie de parede branca, de novo um vazio. Olhei para a esquerda e em frente e as filas continuavam intermináveis. Pisquei consecutivamente os olhos e mandei de novo o olhar para a direita. Lá estava o carro outra vez, com o mesmo indivíduo a abanar a cabeça. Por detrás dele tinham voltado os prédios e as pessoas que ainda à pouco tinham desaparecido.

Liguei o rádio bem alto para me manter acordado. Sabia que andava a trabalhar demais, a beber demais e a descansar de menos. Os sinais de esgotamento começavam a ser evidentes e era melhor ter cuidado. Quando chegasse ao hospital ia tomar qualquer coisa, umas vitaminas ou uma injecção de adrenalina para compensar o cansaço. Pelo menos para aguentar até ao fim de semana.

segunda-feira, agosto 06, 2007

e se o mundo fosse nada? II

A água gelada por entre os meus dedos fez-me finalmente despertar. Enquanto mergulhava a cara no rio glaciar que jorrava da torneira, tentava perceber aquele estúpido sonho. Não é que me lembrasse realmente de tudo, mas as imagens que me passavam diante dos olhos eram, no mínimo, perturbadoras. Eram imagens vazias. De um vazio que gelava a alma.

Fechei a torneira e olhei de relance para a porta do chuveiro. Um duche ia saber-me bem, mas enquanto o esquentador não estivesse arranjado, ia ser difícil ganhar coragem. À noite, quando voltasse, ia tentar consertar aquele pedaço de ferro velho que teimava em avariar todos os Invernos.

Liguei o rádio para saber como estava o trânsito e fui até à cozinha. No frigorífico estava um pacote de leite fora do prazo, uma caixa com o esparguete da semana passada, duas latas de cerveja e mais nada. Fechei a porta num ápice. Todo aquele branco, as prateleiras vazias arrepiaram-me e fizeram-me recordar o sonho esquisito. Bem, o melhor era tomar o pequeno-almoço fora. À noite, quando voltasse, ia até ao supermercado fazer compras e amanhã o frigorífico ias estar cheio de coisas boas e deliciosas a sorrir para mim.

Passava a vida a dizer o mesmo. Quando voltasse, quando tivesse tempo, quando… Mas o tempo nunca era suficiente para tudo aquilo que eu desejava. As horas e os minutos funcionavam, para mim, como uma espécie de teia de aranha e quanto mais voltas eu tentava dar, mais a malha cerrada do tempo se apertava sobre as minhas vontades.

segunda-feira, julho 09, 2007

e se o mundo fosse nada? I

Ali não existia nada. Não corria nem uma brisa, não havia um aroma, nada que me prendesse os sentidos. E, no entanto, não conseguia sair. Balbuciava repetidamente que tinha de me por a correr dali. O meu cérebro dizia às pernas para andar, mas elas tinham vontade própria, vontade de permanecer hirtas, imóveis, no meio de todo aquele nada.

Rodeado de uma imensidão de nada, nem podia dizer que era um deserto porque o meu olhar não vislumbrava nem dunas nem areia. Era um enorme vazio, de um branco ofuscante que me feria os olhos. Sem princípio e sem fim.

Quis gritar com toda a força que os meus pulmões permitiam. Ordenei que as palavras me saíssem pela garganta e que se soltassem, desgarradas, que fossem até onde pudessem, que me fizessem doer no peito de tão sonoras. Eu quis, mas novamente o meu corpo ganhava vontade própria e deixava de me obedecer. Permanecia sereno, ignorando as minhas vontades.

terça-feira, junho 12, 2007

positivo

Senti a areia húmida e fria debaixo dos meus pés nus. Um arrepio percorreu o meu corpo e a aragem fria daquela madrugada trouxe consigo as lembranças da minha adolescência, das férias passadas no Algarve, das grandes noitadas que acabavam normalmente na praia, à beira de uma fogueira, rodeada de amigos. Um grupo de miúdos, inconsequentes, inconstantes e incompreendidos nas suas ânsias. Conversas de fim de noite, casalinhos de verão, cerveja e música, num mundo ideal que se prolongava por quatro semanas de puro divertimento, onde tudo era permitido. Depois voltávamos à cidade, à monotonia dos estudos que odiávamos, às tardes passadas no café para escapar às aulas de química e ao sufoco do recolher obrigatório.

Sentei-me à beira-mar, que a esta hora não passava de uma imensidão negra e brilhante que se espalhava à minha frente e soltava os seus murmúrios e lamentações. Em breve ia começar a nascer o sol. Achei que tinha perdido um pouco a noção do tempo e tive a sensação que já vagueava por ali há horas. Tinha ido para ali para pensar, para chorar as minhas dores e, no entanto, acabaram por me vir à memória as recordações e sensações que quase havia esquecido. E não pensei em nada daquilo que queria, nem por um momento pensei na notícia que recebera essa tarde. Só agora, depois de terem passado pela minha cabeça todas as memórias e recordações, desde a infância até à idade adulta, só agora parava para pensar no que me tinha levado ali.

Não é todos os dias que nos dizem termos os dias contados. Não é todos os dias que somos condenados à morte, sem direito a julgamento ou defesa possível. A morte anunciada chegou numa carta, com uma única palavra a fazer toda a diferença, disposta a mudar uma vida. Positivo. A palavra que para mim se tornou lâmina de guilhotina, tomou conta da minha vontade, decidida a conduzir-me ao pesadelo e ao inferno de uma doença aterradora. Chegou sem pedir licença, decidida a roubar-me as minhas pequenas conquistas.

Tinha descoberto da pior forma que o prazer inconsequente e irreflectido tinha um valor alto de mais.

Decidi naquele instante que não ia esperar pela cobrança. Sem pensar muito mais, avancei determinada em direcção à água gelada e negra. Estava tão fria que quase não me apercebi que o meu coração se contorcia de agonia e os músculos contraíam-se em pequenos espasmos. Mas foi tudo muito rápido, muito breve… assim como tinha sido o tal momento de prazer.

quarta-feira, abril 04, 2007

M.

Deixa-me tocar-te.

Deixa-me passar os dedos pelo teu cabelo sedoso, descer para sentir os angulos do teu rosto, poisar a minha mão sobre o teu peito e escutar o que o teu coração me diz.

Sussurra-me os teus desejos, os teus medos e anseios, deixa-me entrar em ti. Quero estar lá quando gritares, quando sorrires, quando chorares. Quero sempre fazer parte de ti, amparar-te num embalo quente, terno, como quando moravas em mim, como quando os nossos corações batiam como um só.

Não te afastes nunca, nunca leves para longe o nosso amor. Agora dorme, vou estar aqui no momento em que voltares a abrir os olhos.