terça-feira, setembro 18, 2007

e se o mundo fosse nada? IV

Estacionei mesmo em frente à porta e saí a correr por causa da chuva miudinha que entretanto tinha começado a cair. Acenei o homem da portaria e fui directo à minha sala trocar de roupa. Despi o casaco de fazenda escura e os sapatos, substituindo-os pela batinha branca e ténis. Bebi um café amargo de um só gole e fui para a sala de triagem aturar mais umas gripes e viroses, de quem não tem paciência para esperar pelo médico de família e continua a entupir as urgências do hospital, acima de tudo, com graves casos de solidão.

Uma mulher com os seus trinta anos sentou-se à minha frente e começou a despejar uma série de queixas e lamúrias sobre a vida e o stress. Palpitações, agitações e suores frios, nada que um prozac não resolvesse. Passei a bola aos colegas da psiquiatria e mandei entrar o próximo.

Por volta da hora de almoço fui beber mais um café e dirigi-me à sala de grupo para ver as escalas e saber o que me esperava no resto do dia. Olhei para o mapa e percebi que ia passar o resto da minha tarde nos traumas, a receber acidentes de carro e queimaduras ou outra coisa qualquer mais escabrosa.

No meio de uma tarde relativamente calma, um aviso deixa toda a equipa de sobressalto. Um choque em cadeia à saída da cidade ia trazer seis pessoas em estado grave. Um miúdo de sete anos e a mãe, cujo carro se tinha incendiado durante o embate, entraram dez minutos depois para a minha sala. É nestas alturas que o meu raciocínio entra em automático e tudo começa a acontecer rápido demais.

Quase sem perceber, lancei-me sobre o miúdo, queimado até ao tronco superior, que mantinha os seus olhos esbugalhados como que a travar a dor. Soltou um grito que cortou à faca o ar pesado da sala e cravou as unhas no braço da enfermeira até sangrar. Dei-lhe mais uma dose de analgésico mas parecia não estar a funcionar. O seu corpinho esguio começou a contorcer-se em cima da mesa e parecia estar a entrar em choque.

Virei-me para ir buscar um sedativo e quando me preparava para lho administrar o miúdo tinha desaparecido. Sobre a marquesa estava apenas um lençol branco. À minha volta ninguém parecia ter dado por nada e continuavam de volta de um outro doente. Saí disparado pela porta e comecei a correr pelo corredor esbarrando contra quem me surgisse pela frente. Entrei de rompante no meu gabinete e tranquei a porta atrás de mim.