quinta-feira, agosto 05, 2010

madrugada

Não é de noite, não é de dia... é uma mistura difusa. Um negrume salpicado de sardas brilhantes, que se enrola em fios de luz morna, rosada e intensa. É a noite que se recusa a partir, é o dia que insiste em chegar, é a madrugada.

É um instante, um momento apenas, em que o silêncio dita as regras e a neblina se derrama, passeia rente ao chão, rodeia pedras, árvores e arbustos, rodeia-me a mim. No limbo, entre a claridade e a escuridão, embalo-me na tranquilidade eremita, deixo sair os fantasmas e abraço a luz que vem de dentro.

E assim permaneço, vendo o céu à minha frente a corar, embaraçado talvez por se ver assim contemplado. A luz ganha força, as cores ficam mais veementes e vibrantes, até que o sol emerge por fim e mornos beijos vêm pousar-me no rosto.

Há algo de belo e mágico em cada amanhecer, algo de enérgico e profundo que nos toca como se por um instante mais nada importasse. Somos nós e uma bela manhã, um glorioso dia que nasce.

quarta-feira, novembro 04, 2009

tenho saudades

tenho saudades de abrir a janela exígua do quarto e inspirar o ar fresco, mesmo nas manhãs de verão, e de sentir o cheiro dos pinheiros salpicados de gotas de orvalho.

tenho saudades de sair para a rua apressada, quanto metade da casa ainda dormia, de bucha na mão para aconchegar os roncos do estômago, e calcorrear as ruelas da aldeia, descalça, sentido as pedras frias e húmidas por debaixo de mim.

tenho saudades de descer a ladeira até à ponte gigante de pedra que se arqueava para deixar correr o rio em todo o seu esplendor e de me sentar nas pedras junto à levada, para fazer daquela água apressada o meu duche matinal.

tenho saudades de brincar todo o dia na rua, de me embrenhar nos pinhais, de regressar poeirenta e imunda e mergulhar ao final da tarde no negrume do rio, e logo a seguir empoeirar-me de novo em mais aventuras.

tenho saudades de saltar às figueiras, de trepar aos pessegueiros e do doce sabor de mel de uma fruta roubada, às vezes morna por não ter abrigo do sol.

tenho saudades dos serões no adro da igreja, à volta de uma fogueira aromatizada de eucalipto, com fagulhas a dançar no ar quente das noites de verão, das conversas dos velhos e das risadas dos novos.

tenho saudades de mim assim, franzina, sem chegar a um metro, cabelo tosquiado à rapazola, rosada e tisnada do sol.

tenho saudades da minha inocência, de não saber nada da vida e de achar que ia ser sempre assim, feliz... que ia poder sempre descalçar-me, sentir o chão debaixo dos pés, refrescar-me debaixo da cascata e sorrir.

quarta-feira, setembro 30, 2009

um momento perfeito

Aninhas-te no meu colo, enroscas-te em segurança e sentes com um sorriso o calor do meu regaço. Adormeces tranquila sabendo que eu vou estar aqui, exactamente aqui, no momento em que acordares. E à medida que a tua respiração vai ficando mais profunda, a minha mão vai percorrendo o teu corpo pequeno e delicado, em movimentos suaves, tu sentindo o toque da minha mão, eu sentido o calor da tua pele.

Fixo-me no teu rosto profundamente sereno e o meu coração estremece… é por demais puro este amor, esta entrega, um sentir sem princípio nem fim. É por demais perfeito este momento, e todos os outros momentos, desde que tu existes em mim.

Beijo-te o rosto, a testa, as bochechas rosadas e o narizito empertigado… inspiro o teu cheiro inconfundível e agradeço-te em silêncio, por teres entrado na minha vida, por me deixares fazer parte da tua, e por fazeres de mim uma pessoa melhor, todos os dias.

quinta-feira, agosto 20, 2009

solta


Solta um suspiro,
um miado…
liberta o peso que esmaga o peito!
Inspira,
Alivia.
Geme toda a mágoa,
todo o cansaço.

Cede ao insano,
à mania…
esmurra a alma e sacode o oco!
Baqueia,
desliza.
Chora como a perdida,
como a errante.

Vomita, sucumbe, renova
tomba, larga.
Cai,
Cai,
Cai!

Acorda,
ergue o corpo mole.
Abana o passado dos ombros…
despeja os enganos e erros.
Chora, ri, como nunca…
Começa!

quarta-feira, agosto 05, 2009

velhos desconhecidos

Sentada no banco do jardim, sentindo a brisa fresca do final de tarde, lia atentamente as últimas páginas do livro que a tinha acompanhado nos últimos tempos. Agora trazia-o sempre consigo, aproveitando cada instante livre para avançar um pouco mais naquela história que prendia e fascinava a cada frase. Revia-se em cada movimento e em cada suspiro da personagem principal e projectava naquela trama intricada o filme da sua própria vida. Buscava, ansiosa, as últimas páginas, esperando antever ali o desfecho da sua própria história.

No entanto, um certo nervoso miudinho impedia que toda a sua atenção se focasse no livro. Lia uma frase ou duas e logo em seguida voltava atrás por já se ter perdido no seu sentido. Em pano de fundo, estava atenta a tudo o que a rodeava: o casal adolescente junto a uma árvore frondosa em beijos apaixonados e inconsequentes; uns metros mais à frente, noutro banco igual ao seu, uma mulher solitária alimentava um bando de pombos; no carreiro que ladeava o jardim um jovem executivo apressado discutia ao telemóvel.

Cada movimento em redor tinha a sua total atenção. Combinara naquele final de tarde um há muito adiado encontro, com um perfeito estranho que conhecera na internet. Nem sabe muito bem porque tinha acedido ao pedido… trocavam mensagens há dois meses e por ela ficariam assim outros dois. Mas, talvez inspirada pela personagem do livro que trazia consigo, achou que devia arriscar, como arriscam as heroínas dos filmes e pelo menos uma vez, sair da sua redoma, do seu ninho e refúgio.

Mas agora estava nervosa, um aperto na barriga e um constante agitar de pernas indicavam que talvez se tivesse precipitado… afinal, ela não tinha a fibra das heroínas dos filmes. Conhecer este estranho era diferente, talvez porque ele apenas lhe seria estranho nas feições, nas expressões e trejeitos. Conhecia dele mais do que de muitos amigos de longa data… assim como também sabia ter dado a conhecer tudo de si. Sentia-se por isso nua perante ele e seria por isso o único primeiro encontro a que ela comparecia assim, nua.

Perdida entre estes seus pensamentos, os parágrafos do livro perto do fim e as personagens que povoavam aquele jardim, acabou por não se aperceber da chegada do seu desconhecido, que a surpreendeu com um olá sorridente. Agitada retribuiu o cumprimento enquanto ele se sentava ao seu lado. Ele falava com uma total e aparente normalidade, como se a tivesse visto ainda ontem no café ou no bar. Ela, mais calada, ia sondando tudo que ainda desconhecia nele, a estrutura do rosto, a cor dos olhos, o ondular do cabelo e o tom da voz.

Ainda demorou algum tempo até que se conseguisse abstrair desta sensação de desconforto, de estar perante um estranho como amigos desde sempre. Mas a pouco foi descontraindo, foi soltando o sorriso, o corpo e a voz… a pouco foram encaixando os seus ritmos e já era quase noite sem que se tivessem dado conta do passar do tempo. Do crepúsculo ao convite para jantar foi um instante apenas e a noite viria a revelar-se uma das melhores da sua vida.

Só no dia seguinte, quando a luz da manhã a surpreendeu a ela, poisada nos braços do seu desconhecido num abraço profundo, é que se apercebeu como tinha andado alheada e anestesiada nos últimos tempos. Deu-se conta que a vida só é vivida por aqueles que a ela se entregam, deixando o medo para trás, mesmo que isso signifique, de vez em quando, esbarrar em desilusões e tristezas. Às vezes também era possível esbarrar em momentos de grande paz e tranquilidade, como aquele que experienciava agora.

Deu-se também conta que tinha deixado o livro, inacabado, esquecido no banco do jardim. E não valia a pena voltar atrás para o procurar. Não pela probabilidade de já não o encontrar lá, mas porque o desfecho do livro deixara de lhe interessar. Aquela história em que ela se vinha revendo deixara de ser a dela e passara a ser aquilo que sempre fora: uma história de ficção de uma personagem inventada. O seu livro e a sua história estavam ainda por escrever.

quinta-feira, julho 23, 2009

(...)

Beija-me o pescoço, na base que curva para acentuar o ombro e desce, percorre as minhas costas com o toque suave dos teus lábios, com o quente húmido da tua língua. Aguça todos os meus sentidos com a tua boca de mel e emoldura as minhas ancas com as tuas mãos fortes.

Torna agora a subir, arrepia cada milímetro da minha pele e procura a minha boca para me devorares com sofreguidão. Crava os teus dedos ansiosos nos meus seios e aperta-me com força contra o teu peito.

Pára! Agora afasta-te, respira fundo e deseja-me só com o olhar, viaja por cada detalhe do meu corpo e observa as minhas mãos a descerem felinas pelo meu ventre, delicia-te com o meu prazer que é teu também. Partilha comigo este desejo de entrega, esta ode aos sentidos e a loucura da rendição.

segunda-feira, julho 20, 2009

alma náufraga

Há uma alma perdida a vaguear no convés de um barco naufragado, encalhado, arrasado e envelhecido, vencido pelas ondas agitadas de uma tempestade, numa noite escura e fria. A viagem acabou, as mãos engelharam-se, o olhar embaciou-se e do rosto, todas as cores se esvaíram. Já não há ninguém à espera no cais.

Não há risos nem sorrisos, não há abraços nem afagos, não há lágrimas nem suspiros e os lenços brancos já não se agitam ao vento. O tempo passou e com ele a ânsia dos olhares postos no mar. Os corações aconchegaram-se nos casacos pesados da lã de Inverno e aos poucos foram se esquecendo que um dia tinham esperado por um barco no cais.

Pairando sobre a memória de um passadiço de madeira firme, agora bolorenta e recoberta de um limo viscoso, avança até à proa daquele gigante largado ao mar. Também ela largada ao mar, ali ficou depois do fim, feita capitã dos mares na recusa de abandonar o posto, esperando um recomeço, uma salvação que nunca chegou. E da espera feita eterna, veio o apego e a estranha afeição àquele barco submerso e esquecido, como esquecida estava ela da vida.

Todos os fantasmas tinham desaparecido, fosse na perseguição de uma luz ou sugados pela escuridão, mas tarde ou cedo todos se tinham diluído naquelas águas sombrias. Todos menos ela. Náufraga de corpo e de alma, fizera daqueles destroços a sua ilha, o seu limbo e purgatório. Aguardava que um qualquer barqueiro ali se aportasse para lhe oferecer uma derradeira viagem, uma passagem para esse caminho que as almas percorrem antes da redenção.

É que já no longínquo dia em que a sua alma, ainda corpo, tinha embarcado naquele navio, ela buscava como único destino a redenção, na forma de um par de braços que a esperariam no cais, agitando um lenço branco ao vento.