quarta-feira, novembro 04, 2009

tenho saudades

tenho saudades de abrir a janela exígua do quarto e inspirar o ar fresco, mesmo nas manhãs de verão, e de sentir o cheiro dos pinheiros salpicados de gotas de orvalho.

tenho saudades de sair para a rua apressada, quanto metade da casa ainda dormia, de bucha na mão para aconchegar os roncos do estômago, e calcorrear as ruelas da aldeia, descalça, sentido as pedras frias e húmidas por debaixo de mim.

tenho saudades de descer a ladeira até à ponte gigante de pedra que se arqueava para deixar correr o rio em todo o seu esplendor e de me sentar nas pedras junto à levada, para fazer daquela água apressada o meu duche matinal.

tenho saudades de brincar todo o dia na rua, de me embrenhar nos pinhais, de regressar poeirenta e imunda e mergulhar ao final da tarde no negrume do rio, e logo a seguir empoeirar-me de novo em mais aventuras.

tenho saudades de saltar às figueiras, de trepar aos pessegueiros e do doce sabor de mel de uma fruta roubada, às vezes morna por não ter abrigo do sol.

tenho saudades dos serões no adro da igreja, à volta de uma fogueira aromatizada de eucalipto, com fagulhas a dançar no ar quente das noites de verão, das conversas dos velhos e das risadas dos novos.

tenho saudades de mim assim, franzina, sem chegar a um metro, cabelo tosquiado à rapazola, rosada e tisnada do sol.

tenho saudades da minha inocência, de não saber nada da vida e de achar que ia ser sempre assim, feliz... que ia poder sempre descalçar-me, sentir o chão debaixo dos pés, refrescar-me debaixo da cascata e sorrir.

quarta-feira, setembro 30, 2009

um momento perfeito

Aninhas-te no meu colo, enroscas-te em segurança e sentes com um sorriso o calor do meu regaço. Adormeces tranquila sabendo que eu vou estar aqui, exactamente aqui, no momento em que acordares. E à medida que a tua respiração vai ficando mais profunda, a minha mão vai percorrendo o teu corpo pequeno e delicado, em movimentos suaves, tu sentindo o toque da minha mão, eu sentido o calor da tua pele.

Fixo-me no teu rosto profundamente sereno e o meu coração estremece… é por demais puro este amor, esta entrega, um sentir sem princípio nem fim. É por demais perfeito este momento, e todos os outros momentos, desde que tu existes em mim.

Beijo-te o rosto, a testa, as bochechas rosadas e o narizito empertigado… inspiro o teu cheiro inconfundível e agradeço-te em silêncio, por teres entrado na minha vida, por me deixares fazer parte da tua, e por fazeres de mim uma pessoa melhor, todos os dias.

quinta-feira, agosto 20, 2009

solta


Solta um suspiro,
um miado…
liberta o peso que esmaga o peito!
Inspira,
Alivia.
Geme toda a mágoa,
todo o cansaço.

Cede ao insano,
à mania…
esmurra a alma e sacode o oco!
Baqueia,
desliza.
Chora como a perdida,
como a errante.

Vomita, sucumbe, renova
tomba, larga.
Cai,
Cai,
Cai!

Acorda,
ergue o corpo mole.
Abana o passado dos ombros…
despeja os enganos e erros.
Chora, ri, como nunca…
Começa!

quarta-feira, agosto 05, 2009

velhos desconhecidos

Sentada no banco do jardim, sentindo a brisa fresca do final de tarde, lia atentamente as últimas páginas do livro que a tinha acompanhado nos últimos tempos. Agora trazia-o sempre consigo, aproveitando cada instante livre para avançar um pouco mais naquela história que prendia e fascinava a cada frase. Revia-se em cada movimento e em cada suspiro da personagem principal e projectava naquela trama intricada o filme da sua própria vida. Buscava, ansiosa, as últimas páginas, esperando antever ali o desfecho da sua própria história.

No entanto, um certo nervoso miudinho impedia que toda a sua atenção se focasse no livro. Lia uma frase ou duas e logo em seguida voltava atrás por já se ter perdido no seu sentido. Em pano de fundo, estava atenta a tudo o que a rodeava: o casal adolescente junto a uma árvore frondosa em beijos apaixonados e inconsequentes; uns metros mais à frente, noutro banco igual ao seu, uma mulher solitária alimentava um bando de pombos; no carreiro que ladeava o jardim um jovem executivo apressado discutia ao telemóvel.

Cada movimento em redor tinha a sua total atenção. Combinara naquele final de tarde um há muito adiado encontro, com um perfeito estranho que conhecera na internet. Nem sabe muito bem porque tinha acedido ao pedido… trocavam mensagens há dois meses e por ela ficariam assim outros dois. Mas, talvez inspirada pela personagem do livro que trazia consigo, achou que devia arriscar, como arriscam as heroínas dos filmes e pelo menos uma vez, sair da sua redoma, do seu ninho e refúgio.

Mas agora estava nervosa, um aperto na barriga e um constante agitar de pernas indicavam que talvez se tivesse precipitado… afinal, ela não tinha a fibra das heroínas dos filmes. Conhecer este estranho era diferente, talvez porque ele apenas lhe seria estranho nas feições, nas expressões e trejeitos. Conhecia dele mais do que de muitos amigos de longa data… assim como também sabia ter dado a conhecer tudo de si. Sentia-se por isso nua perante ele e seria por isso o único primeiro encontro a que ela comparecia assim, nua.

Perdida entre estes seus pensamentos, os parágrafos do livro perto do fim e as personagens que povoavam aquele jardim, acabou por não se aperceber da chegada do seu desconhecido, que a surpreendeu com um olá sorridente. Agitada retribuiu o cumprimento enquanto ele se sentava ao seu lado. Ele falava com uma total e aparente normalidade, como se a tivesse visto ainda ontem no café ou no bar. Ela, mais calada, ia sondando tudo que ainda desconhecia nele, a estrutura do rosto, a cor dos olhos, o ondular do cabelo e o tom da voz.

Ainda demorou algum tempo até que se conseguisse abstrair desta sensação de desconforto, de estar perante um estranho como amigos desde sempre. Mas a pouco foi descontraindo, foi soltando o sorriso, o corpo e a voz… a pouco foram encaixando os seus ritmos e já era quase noite sem que se tivessem dado conta do passar do tempo. Do crepúsculo ao convite para jantar foi um instante apenas e a noite viria a revelar-se uma das melhores da sua vida.

Só no dia seguinte, quando a luz da manhã a surpreendeu a ela, poisada nos braços do seu desconhecido num abraço profundo, é que se apercebeu como tinha andado alheada e anestesiada nos últimos tempos. Deu-se conta que a vida só é vivida por aqueles que a ela se entregam, deixando o medo para trás, mesmo que isso signifique, de vez em quando, esbarrar em desilusões e tristezas. Às vezes também era possível esbarrar em momentos de grande paz e tranquilidade, como aquele que experienciava agora.

Deu-se também conta que tinha deixado o livro, inacabado, esquecido no banco do jardim. E não valia a pena voltar atrás para o procurar. Não pela probabilidade de já não o encontrar lá, mas porque o desfecho do livro deixara de lhe interessar. Aquela história em que ela se vinha revendo deixara de ser a dela e passara a ser aquilo que sempre fora: uma história de ficção de uma personagem inventada. O seu livro e a sua história estavam ainda por escrever.

quinta-feira, julho 23, 2009

(...)

Beija-me o pescoço, na base que curva para acentuar o ombro e desce, percorre as minhas costas com o toque suave dos teus lábios, com o quente húmido da tua língua. Aguça todos os meus sentidos com a tua boca de mel e emoldura as minhas ancas com as tuas mãos fortes.

Torna agora a subir, arrepia cada milímetro da minha pele e procura a minha boca para me devorares com sofreguidão. Crava os teus dedos ansiosos nos meus seios e aperta-me com força contra o teu peito.

Pára! Agora afasta-te, respira fundo e deseja-me só com o olhar, viaja por cada detalhe do meu corpo e observa as minhas mãos a descerem felinas pelo meu ventre, delicia-te com o meu prazer que é teu também. Partilha comigo este desejo de entrega, esta ode aos sentidos e a loucura da rendição.

segunda-feira, julho 20, 2009

alma náufraga

Há uma alma perdida a vaguear no convés de um barco naufragado, encalhado, arrasado e envelhecido, vencido pelas ondas agitadas de uma tempestade, numa noite escura e fria. A viagem acabou, as mãos engelharam-se, o olhar embaciou-se e do rosto, todas as cores se esvaíram. Já não há ninguém à espera no cais.

Não há risos nem sorrisos, não há abraços nem afagos, não há lágrimas nem suspiros e os lenços brancos já não se agitam ao vento. O tempo passou e com ele a ânsia dos olhares postos no mar. Os corações aconchegaram-se nos casacos pesados da lã de Inverno e aos poucos foram se esquecendo que um dia tinham esperado por um barco no cais.

Pairando sobre a memória de um passadiço de madeira firme, agora bolorenta e recoberta de um limo viscoso, avança até à proa daquele gigante largado ao mar. Também ela largada ao mar, ali ficou depois do fim, feita capitã dos mares na recusa de abandonar o posto, esperando um recomeço, uma salvação que nunca chegou. E da espera feita eterna, veio o apego e a estranha afeição àquele barco submerso e esquecido, como esquecida estava ela da vida.

Todos os fantasmas tinham desaparecido, fosse na perseguição de uma luz ou sugados pela escuridão, mas tarde ou cedo todos se tinham diluído naquelas águas sombrias. Todos menos ela. Náufraga de corpo e de alma, fizera daqueles destroços a sua ilha, o seu limbo e purgatório. Aguardava que um qualquer barqueiro ali se aportasse para lhe oferecer uma derradeira viagem, uma passagem para esse caminho que as almas percorrem antes da redenção.

É que já no longínquo dia em que a sua alma, ainda corpo, tinha embarcado naquele navio, ela buscava como único destino a redenção, na forma de um par de braços que a esperariam no cais, agitando um lenço branco ao vento.

quinta-feira, julho 16, 2009

história do mar

Ela é ninfa etérea, de pele clara e cabelo de mel, enrolado como a dança das ondas. Tem na pele a macieza do passar das águas e nas curvas o ondular do mar. Caminha quase pairando e traz consigo um cheiro de doce sal. Emerge das águas escuras e sorri.

Ele é faroleiro rendido, vergastado pelo tempo, derrotado pela solidão, guardião da luz que acalma os marinheiros vadios. De pele dura e vivida traz no rosto as marcas do vento norte e no olhar, o azul do horizonte que fixa, noite após noite, à espera de também ele ver aí a sua luz.

Ela é mar revolto, é força de ondas gigantes, ele é terra firme de esperança iluminada. Dois seres de dois mundos que se tocam, cruzam, mas nunca se misturam ou entranham. Encontram-se à beira do mar nas noites escuras, quando a lua já vai alta demais para denunciar os amantes. Naquela areia há silêncio e entrega, há loucura e paixão, rendição e abandono. Naquela areia ficam os sonhos do mar que deseja a terra e da terra que anseia pelo mar. E ali ficam as marcas de um encontro improvável, quase impossível e que a maré sobe apressada para apagar os seus vestígios.

Aos primeiros raios de sol, ela esgueira-se do seu corpo firme e torna ao mar, navegando para longe, sem um olhar, sem um adeus. Ele ali fica, mais uns instantes, enquanto o cheiro dela ainda o embriaga e só depois aclara a visão, tentando em vão desvendar-lhe o destino. E perante a ausência de evidências ali fica a questionar-se, se a noite foi de entrega real ou de sonhada fantasia. Torna ao seu farol, à sua torre segura e espera por mais uma noite, de olhar fixo no horizonte, à espera de ver ali a sua luz.

quinta-feira, abril 16, 2009

partilha

Poiso o olhar na cama vazia e inspiro profundamente para sentir o teu cheiro entranhado nos lençóis brancos, amarrotados e cansados de amparar a nossa dança. Fecho os olhos e vejo-te ali de novo, numa memória tão vivida que quase sinto o calor da tua pele colada na minha.

Chegaste em silêncio e despido de pudor, movido pelo desejo lascivo que o meu menear de ancas tinha invocado. A respiração pesada, as mãos quentes e o olhar penetrante denunciaram-te ao primeiro instante e assim entraste na minha intimidade. As mãos ansiosas cravaram-se na minha cintura e a tua boca procurou o calor da minha.

Ainda estremeço ao rever o teu gesto de arrebato que me rasgou a blusa na urgência de te afundares no redondo dos meus seios. Percebi ali mesmo que a minha provocação tinha libertado o teu instinto caçador e agora eu era a presa, indefesa e desamparada, como se uma perseguição imensa me tivesse esgotado as forças.

Entreguei-me à fantasia e deixei-te assumir o papel principal, invadiste-me com o teu desejo, encaixando a tua masculinidade na minha suposta inocência. A cada movimento teu correspondia um suspiro meu, de prazer indisfarçável, num crescendo que me enlouquecia e me fazia pedir mais. Já não conseguia ser apenas presa, queria também liderar a caçada e provocar-te até me esgotares de satisfação.

Perdendo a noção de quem éramos, exorcizámos ali todos os nossos medos, todas as frustrações e angústias que aproximaram dois perfeitos estranhos.

Agora que restava apenas o teu cheiro naquela cama, sorri por dentro perante a imensa sensação de liberdade que aquele prazer me tinha trazido. Também tu saíste de sorriso cúmplice no rosto, livre dos demónios e dos fantasmas que te acompanhavam antes.

terça-feira, janeiro 27, 2009

em segredo

O vento de um Inverno rigoroso soprava lá fora e o frio imenso era visível nos seres encolhidos que passavam na rua, enterrados em grossos casacos e fartos cachecóis. Cá dentro não se sentia o frio, muito pelo contrário. O calor do chocolate quente que eu remexia na chávena subia delicadamente e acariciava-me com aromas de outras paragens.

Do outro lado da mesa, tu sorrias para mim e falavas sem parar, sobre isto ou aquilo, soltando pequenas gargalhadas e interjeições na busca por uma descrição fiel dos acontecimentos. Falavas entusiasmada dos novos projectos e eu tentava em vão ouvir-te com toda a minha atenção. Mas sem querer, a tua voz começava a ecoar distante e eu dava por mim a fixar-me apenas no movimento dos teus lábios. Não era certamente numa tentativa de aqui adivinhar as palavras, mas antes um forte desejo de ter esses lábios para mim, para lhes sentir o calor, a suavidade e a humidade num beijo apaixonado.

Fixo o teu rosto e sorrio para ti, respondo-te qualquer coisa sem compromisso e repenso que nunca tive a coragem suficiente para dizer que te amo. É sensação recorrente em todos os nossos encontros e nas despedidas que ambas tentamos protelar. Porque quando te abraço queria não ter de te soltar nunca. Porque quando te beijo a face queria na verdade a tua boca na minha. Queria acolher-te no meu peito, saborear os teus seios lindos, perfeitos e irrepreensíveis. Queria sentir sempre a tua pele sedosa na ponta dos meus dedos ou aninhar toda a tua beleza em mim.

Se tu quisesses, se eu pudesse, se o mundo deixasse, o meu regaço era teu…o meu amor estaria aos teus pés, em total entrega. E aí saberias o quanto tinhas andado enganada, buscando conforto nos homens desse mundo. E aí saberias que aquilo que procuras incessantemente, só eu te posso dar.