segunda-feira, julho 20, 2009

alma náufraga

Há uma alma perdida a vaguear no convés de um barco naufragado, encalhado, arrasado e envelhecido, vencido pelas ondas agitadas de uma tempestade, numa noite escura e fria. A viagem acabou, as mãos engelharam-se, o olhar embaciou-se e do rosto, todas as cores se esvaíram. Já não há ninguém à espera no cais.

Não há risos nem sorrisos, não há abraços nem afagos, não há lágrimas nem suspiros e os lenços brancos já não se agitam ao vento. O tempo passou e com ele a ânsia dos olhares postos no mar. Os corações aconchegaram-se nos casacos pesados da lã de Inverno e aos poucos foram se esquecendo que um dia tinham esperado por um barco no cais.

Pairando sobre a memória de um passadiço de madeira firme, agora bolorenta e recoberta de um limo viscoso, avança até à proa daquele gigante largado ao mar. Também ela largada ao mar, ali ficou depois do fim, feita capitã dos mares na recusa de abandonar o posto, esperando um recomeço, uma salvação que nunca chegou. E da espera feita eterna, veio o apego e a estranha afeição àquele barco submerso e esquecido, como esquecida estava ela da vida.

Todos os fantasmas tinham desaparecido, fosse na perseguição de uma luz ou sugados pela escuridão, mas tarde ou cedo todos se tinham diluído naquelas águas sombrias. Todos menos ela. Náufraga de corpo e de alma, fizera daqueles destroços a sua ilha, o seu limbo e purgatório. Aguardava que um qualquer barqueiro ali se aportasse para lhe oferecer uma derradeira viagem, uma passagem para esse caminho que as almas percorrem antes da redenção.

É que já no longínquo dia em que a sua alma, ainda corpo, tinha embarcado naquele navio, ela buscava como único destino a redenção, na forma de um par de braços que a esperariam no cais, agitando um lenço branco ao vento.

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