quinta-feira, julho 17, 2008

leonor

Entrei, pé ante pé, na penumbra do nosso quarto. Descalço senti o piso macio a ceder ligeiramente a cada passo, enquanto avançava com uma surpreendente cautela, como se aquele espaço já não me fosse familiar, como se eu fosse um estranho a invadir a intimidade alheia. Uma fresta na janela convidava o vento fresco a entrar, empurrando a cortina para uma dança a par ao som de uma melodia imaginária. Na parede em frente uma enorme tela impunha-se sobre a cama e as suas pinceladas grossas denunciavam dois amantes despidos, abraçados e imortalizados na sua comunhão.

Sobre a cama, uma discussão de lençóis brancos revoltos acusavam a urgência dessa manhã, a sucessão imprevisível de acontecimentos e o desfecho, agora sei, inevitável. Num amanhecer como tantos outros, em que à primeira luz do dia Leonor despertava para se vir abrigar nos meus braços e depositar nos meus lábios um beijo quente, a claridade não me trouxe o seu calor habitual nem a seda da sua pele.

Ainda mergulhado num limbo entre o sonho e a consciência aguardei mais um pouco até me incomodar aquela suposta ausência e procurei eu o seu corpo esguio. Procurei as suas formas e o seu toque quente para a amar, como em tantas outras manhãs.

Não consigo sequer recordar, sem uma náusea e um desespero profundo, o terror súbito quando as pontas dos meus dedos me levaram ao pensamento uma mensagem de frieza, rigidez e inércia. Não tenho como descrever com a mínima exactidão os minutos que se seguiram na minha luta com Leonor, entre gritos angustiados perante a revelação do seu fim e as tentativas inúteis de a resgatar para a vida.

Regressar agora àquele quarto, depois da tempestade, depois das explicações aparentemente tão lógicas e científicas e da sucessão de burocracias, era encarar a realidade da ausência sem ainda a sentir verdadeiramente. Pairava no ar um vestígio ao seu perfume floral e as roupas dispersas iludiam a um prenúncio da sua presença. Breve foi essa ilusão e logo tombei de joelhos no chão, vencido pelo destino e rendido à evidência.

Quisera eu também não ter acordado nesta manhã para não ter de te ver pálida e sem brilho nos olhos. Quisera eu não respirar nem mais uma vez para assim ir ao teu encontro e voltar a sentir-te nos meus braços. Minha querida e adorada Leonor, minha companheira, amiga e amante… a chama que me alimentava extinguiu-se e agora sou órfão, despojado que estou de ti e do teu amor. Aqui, neste chão que já foi nosso, choro pela primeira vez e deixo partir a minha alma no rio dessas lágrimas.

1 comentário:

Unknown disse...

À falta das "palavras certas"...lindo...