
Estes pensamentos fizeram-me companhia durante o longo trajecto pela Avenida Principal. Ao meu lado ia um carro, daqueles desportivos topo de gama, com um miúdo de vinte e poucos anos a abanar a cabeça ao som da música, enquanto acompanhava com o ritmo com pancadinhas no volante. Ia completamente absorto do mundo à volta, mas parecia feliz. Parecia estar vivo, acordado para a vida, que era algo que eu desconhecia de há alguma tempo para cá.
Ontem à noite tinha aparecido um destes jovens lá no hospital. A diferença era que o de ontem vinha com duas fracturas expostas, uma hemorragia interna e um pulmão perfurado. Não houve nada a fazer, enquanto aqueles olhos morenos se pregaram fixamente em mim e eu senti de novo, uma maldita sensação de frustração. Mais um que já não ia ouvir música no trânsito nem passear com a namorada ao fim de semana ou jogar uma futebolada com os amigos. Como costumávamos dizer, mais um para o andar de baixo.
Quando voltei a olhar para o lado, o carro já não estava lá. Nem o carro, nem o miúdo, nem o resto da rua. Ao meu lado estava uma espécie de parede branca, de novo um vazio. Olhei para a esquerda e em frente e as filas continuavam intermináveis. Pisquei consecutivamente os olhos e mandei de novo o olhar para a direita. Lá estava o carro outra vez, com o mesmo indivíduo a abanar a cabeça. Por detrás dele tinham voltado os prédios e as pessoas que ainda à pouco tinham desaparecido.
Liguei o rádio bem alto para me manter acordado. Sabia que andava a trabalhar demais, a beber demais e a descansar de menos. Os sinais de esgotamento começavam a ser evidentes e era melhor ter cuidado. Quando chegasse ao hospital ia tomar qualquer coisa, umas vitaminas ou uma injecção de adrenalina para compensar o cansaço. Pelo menos para aguentar até ao fim de semana.